Perguntas, respostas e provocações sobre Tecnologia, Diversidade e Inclusão com Gustavo Glasser
A tecnologia pode mudar vidas. Você já pensou nisso? Se ainda não pensou, ao menos já foi impactado por ela diversas vezes. As inúmeras revoluções cotidianas causadas pela internet das coisas, como pedir um motorista particular ou comida com apenas alguns cliques não deixa espaço para dúvidas. Mas estamos evoluindo no contexto social junto com esses avanços?
O SafeSpace Guest é um espaço para apresentar e discutir diferentes pontos de vistas de temas relacionados a inclusão, equidade, ética e avanços sociais.
Desta vez, conversamos com o Gustavo Glasser, CEO e Fundador da Carambola.
Gustavo, você pode nos contar um pouco sobre você e sua trajetória profissional?
Sempre o mesmo questionamento “Você faz um negócio muito diferente, onde você acha essas pessoas?”
Eu me vi muito jovem em um contexto de exclusão familiar, o que me causou uma série de consequências emocionais e financeiras. Por conta disso, passei a trabalhar com qualquer coisa que me aparecia e por muito tempo fiquei me esforçando muito sem chegar a lugar nenhum. É muito difícil sair desse contexto. Certa vez encontrei um amigo que estava na área de programação ganhando 5 mil reais e perguntei “Como faço isso que você está fazendo AMANHÃ?''. E assim me inscrevi em um curso da Microsoft, prestei uma prova e consegui passar, mesmo não sabendo onde pesquisar o material, mesmo sem nem saber por onde começar. Era um curso gratuito com duração de 3 meses e uma feira de emprego no final. Foram 3 meses sem luz em casa porque não tinha como trabalhar e estudar ao mesmo tempo.
O primeiro trabalho formal que consegui foi em um grande banco. Lá, quando eu contava minha história, as pessoas diziam “não tem ninguém com uma trajetória parecida com a sua”. Mas eu conhecia muitas pessoas que tinham uma história parecida com a minha, só que eles estavam do lado de lá da ponte. Com esse entendimento, eu fundei a Carambola em 2013. Queria fazer alguma coisa diferente, mesmo sem saber direito o que seria esse diferente.
A Carambola começou como uma consultoria de software com foco em startups, como uma pequena fábrica de software para empresas. Eu tinha pouco dinheiro para contratar as pessoas e por isso acabava contratando todo mundo que o mercado não queria contratar. Ensinava tudo o que era possível, passava 1 ano e meio a pessoa ia embora e eu precisava contratar de novo. Em 2015 desenvolvi um produto que deu muito certo. Éramos em 4 pessoas, mas o sucesso foi tanto que quando o vendemos para a Americanas.com. O negócio que começou com 4 pessoas se tornou um negócio de 500. E sempre o mesmo questionamento “Você faz um negócio muito diferente, onde você acha essas pessoas?” Bom, elas sempre estiveram aí, vocês que não querem enxergar. Por conta desse projeto recebi uma proposta, em 2017, de ir para Washington nos EUA contar a minha história. Lá me disseram que o que eu fazia era formar pessoas, e que era algo muito difícil. E então eu finalmente entendi. Se eu formo pessoas e elas vão embora é porque estou fazendo alguma coisa certa, talvez a Carambola seja uma empresa de educação e não uma fábrica de software. Voltei em 2018, reformulamos e reestruturamos o modelo de negócio, modelo de formação de pessoas e introduzimos uma metodologia de aprendizado adaptativo que se molda de acordo com a percepção de vida das pessoas.
Hoje a Carambola forma profissionais que em grande maioria tem renda familiar menor do que dois salários mínimos mas que após quatro meses de programa são contratados com vagas entre quatro e sete mil reais. Mais de 80% dos alunos estão em situação de vulnerabilidade social ou porque moram em um CEP violento ou por ser uma pessoa LGBT, uma pessoa negra ou periférica ou por qualquer outro contexto que a impedia de entrar no mercado, que é tão fechado, preconceituoso e cheio de vieses.
O que os termos “diversidade e inclusão” significam para você e qual a importância que eles têm no mercado de trabalho atualmente?
Vejo a diversidade como algo quantitativo além de ser um fato, porque ela existe, as pessoas são diferentes, vêm de contextos diferentes. Mas quando falamos da diversidade no mercado de trabalho, a leitura que eu faço é outra: a diversidade que temos no mercado de trabalho é representativa do que é a nossa sociedade? Se temos uma sociedade em que 50% das pessoas são negras, você precisa entender que se sua empresa não tem pessoas negras em cargos de liderança, existe um problema de representatividade. A diversidade é um indicador para isso.
A inclusão é um passo além da representatividade. A diversidade pode estar sendo feita, mas essas pessoas participam dos processos de decisão? Conseguem evoluir profissionalmente e entender que não estão ali só para serem um número? Direcionam a empresa de alguma forma? Ou seja, elas estão de fato incluídas na cultura da empresa?
Portanto diversidade e inclusão são dois indicadores e servem como uma forma de avaliar os nossos próprios erros. Costumo brincar, esse assunto é muito mais sobre nós do que sobre as outras pessoas. Pare para pensar, se alguém fala “ah. quero falar dos trans, dos negros” parece que está falando de uma coisa distante, desconhecida. Se quando essa pessoa contrata alguém trans, sente uma certa estranheza, ela precisa se questionar: “Como eu resolvo essa estranheza? O que tem dentro de mim? Eu quero uma pessoa trans que não pareça trans? Uma pessoa negra que não expresse sua negritude? O que isso fala sobre mim?” Questionamentos como esses são boas ferramentas para a gente tentar entender o que tem dentro de nós e o que precisamos mudar.
De que forma a tecnologia pode ser um vetor de mudança em termos de inclusão social?
“Se vamos ter que aprender e construir um mercado novo, implementar novas linguagens e ferramentas, aprender a lidar com novos problemas, porque não implementar uma forma de comunicação atualizada, abrir espaço para as pessoas falarem sobre questões graves, ensinar a trabalhar as vivências de outro modo? ”
A leitura que tenho feito é que todas as empresas em breve virarão empresas de tecnologia, então estamos tendo que aprender um monte de coisa nova como por exemplo pedir táxi no aplicativo, pedir comida online. Conversar com a avó por Whatsapp. São tantas mudanças, né? E isto se interliga com a evolução social. Como? Você já deve ter ouvido a história de alguém que se assume gay na família e dizem “nossa mas é complicado para minha vó entender porque ela é velha e isso é uma coisa muito diferente, porque na época delas..”, mas a avó usa o Whatsapp. Por que ela pode aprender isso mas não pode aprender outra coisa? Porque não podemos usar a tecnologia para aprender, como um vetor de transformação? Já vamos ter que aprender um monte de coisa nova então porque não a usar um contexto menos racista, menos lgbtfóbico?
Se vamos ter que aprender e construir um mercado novo, implementar novas linguagens e ferramentas, aprender a lidar com novos problemas, porque não implementar uma forma de comunicação atualizada, abrir espaço para as pessoas falarem sobre questões graves, ensinar a trabalhar as vivências de outro modo? Se a dez anos atrás mal sabíamos usar um celular e todo mundo sabe hoje, porque há 10 anos atrás éramos muito racistas e hoje continuamos sendo? Já que a tecnologia é uma coisa que vai transformar o mundo, e está transformando, então porque não aprendemos da forma certa? Esse é o principal vetor que temos da tecnologia como agente de mudança, a capacidade de se atualizar, de aprender e evoluir.
Sabemos que algumas dificuldades vividas durante a trajetória podem ser fortalecedoras em estratégias positivas para algumas áreas da vida de uma pessoa. Quais foram as maiores dificuldades que você encontrou e de que forma elas te fortaleceram?
Não tenho uma resposta certa ainda. Mas tem algo dentro de mim que é o que me faz fazer as coisas do jeito que eu faço... Falo sobre a violência que eu sofri. Porque a violência que parte de uma família abandonar um filho, não é física mas causa alguns traumas que não sei se um dia vou “consertar” e falar que superei. Existe um buraco tão grande dentro de mim que não quero que ninguém sinta o mesmo. Não precisa acontecer com outras pessoas, é só o que penso. E é o que motiva meu trabalho. Quanto mais trabalho para que outras pessoas não vivam isso, mais calma eu sinto nesta angústia interior.
Traumas como esse não são coisas que as pessoas que viveram, dizem aliviadas “ah eu superei, é meu trauma do passado" não passou e não vai passar nunca porque além de uma exclusão social que já é gravíssima, proibir uma pessoa de conviver com a sua família por ser gay, ainda fui compreender só depois que eu era uma pessoa trans. Então também não fazia ideia do que estava acontecendo comigo, só sabia que me sentia diferente. Eu não escolhi isso para ser problemático ou para confrontar o sistema porque ninguém escolhe o caminho mais difícil de propósito. Meu trabalho é permitir que o Gustavo que está nascendo agora em 2021 não viva o que eu vivi, que isso seja apenas uma história e que não contemos mais histórias como essa.
Gustavo, se você pudesse desmistificar para o mundo todo um estereótipo e estigma social que ainda adotam ao falarem sobre pessoas trans, o que seria?
Não sei se eu posso falar pessoalmente sobre transfobia porque não sofro isso. Sou um homem branco de classe média alta, heterossexual. Sou trans? Sou. Mas para as pessoas que não sabem, só sou se eu quiser falar senão me olham como uma pessoa cis. Posso falar sobre algo que já refleti muito: a responsabilidade que temos de entender e aprender a luta de outras pessoas.
Ninguém nasce desconstruído, mas isso não significa que você precise continuar cometendo erros por causa disso. Ja fui racista, homofóbico, misogino, claro que já fui. Em uma sociedade como a nossa, falar que eu sou perfeito não existe. Mas penso que quero fazer diferente, me desconstruir porque, se errei, não é algo que quero continuar fazendo.
A questão da transfobia foi um aprendizado e para explicar melhor vou contar sobre minha transição porque tive muito medo de passar por ela, medo social, afinal eu já havia sido abandonado. Quando eu era “só gay” achava que eu era tão gay que seria de outro gênero, essa era a leitura que eu tinha de uma pessoa trans. Hoje entendo que não é, mas com a educação que a gente tinha e a forma que falávamos sobre o assunto era o que eu achava que estava acontecendo comigo. Nessa época me afastei de tudo o que trazia a temática trans porque eu não queria ser trans, eu queria ser um homem. Me olhava no espelho e via que tinha um estereótipo de um homem, as pessoas não desconfiavam, então eu não queria ser comparado com uma mulher trans de 1,80 de altura, que tinha gogó, barba por fazer porque vinha da periferia e não tinha o mesmo acesso que eu as coisas. Fui muito transfóbico. Até o dia em que fui fazer a retificação dos meus documentos e achei que fosse algo super complicado mas na verdade foi instantâneo. Fui estudar e vi que as mulheres trans que eu não queria ser, que eu achava que não eram parecidas comigo, tinham lutado por aqueles direitos para mim. Então percebi que sou exatamente como essas mulheres.
Portanto não posso falar de transfobia em relação a minha vivência. Temos que lutar para que essas mulheres sejam incluídas, pessoas que não tem a mesma condição social mas que não devem ser encaradas como “menos trans', menos inseridas ou menos palatáveis. Quero que essa mulher entre no Itaú e seja respeitada como eu sou, porque mulheres como ela que lutaram pelo direito de ter coisas que tenho. Isso que temos que aprender, nunca é só sobre a gente, existe todo um contexto.