Inclusão autista no ambiente de trabalho: dúvidas e respostas com Gabrielle Ramos
No dia-a-dia de trabalho, você já se relacionou com uma pessoa autista? Você já pensou sobre como seria a experiência de uma pessoa autista no seu ambiente de trabalho?
A verdade é que ainda temos muito o que aprender sobre a neurodiversidade. É preciso reconhecer questões estruturais e rever processos que, muitas vezes, acabam excluindo ou menosprezando pessoas neurodivergentes. O caminho é longo, mas como qualquer pauta relacionada à diversidade e inclusão, o importante é começar.
Então vamos por partes. O que significa o termo 'autista'? O termo se refere a diferenças neurológicas que fazem com que pessoas pensem e ajam de forma distinta do que se considera um padrão “normal”, ou “neurotípico”.
Para falar sobre o assunto, convidamos Gabrielle Ramos, profissional de Customer Experience (Experiência do Cliente), Consultora, Influenciadora Digital e uma pessoa autista.
Gabrielle conta de forma marcante sobre sua trajetória profissional e suas experiências com diversidade e inclusão, bem como as dificuldades que já precisou superar nesta área de sua vida por ser autista. Aproveite e embarque com a Gabi nestas valiosas reflexões sobre a inclusão de pessoas autistas nos espaços de trabalho.
*O nome da atual empresa onde Gabrielle trabalha foi vetado devido ao posicionamento de marca que busca não se promover com base nas ações inclusivas que exercem.
Gabrielle, você pode nos contar um pouco da sua história?
Minha infância foi complicada, eu não sabia que era autista e, durante certo momento, nem as pessoas especialistas. Porque o diagnóstico de autismo é baseado em meninos, o que fez com que eu passasse por vários diagnósticos errados, desde transtorno de linguagem até esquizofrenia infantil, antes de entender que eu era autista. Durante toda minha vida estudei em escola regular com adaptação. Só me contaram que eu tinha autismo aos 18 anos, então foi um espaço de tempo em que eu achava que era doida, afinal não entendia a necessidade de estudar em sala separada, ou porque as minhas atividades eram diferentes.
Iniciei minha trajetória no curso superior cursando Pedagogia, mas parei no terceiro período. Quando estava no segundo período, fui vitima de um estupro no prédio da faculdade, que chegou a ser noticiado em todos os jornais. Por conta desse episódio, comecei a regredir. Todo o avanço que eu já havia conquistado, desde a minha independência até a minha fala, perdi em um dia. Na época eu já estava trabalhando e cheguei a pensar que seria demitida, porque eu já não produzia como antes e mal falava. O transtorno do espectro autista vem com dificuldade de linguagem. Para que eu pudesse falar, precisei fazer tratamento com fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, e psicoterapeuta. Em determinado ano meus tratamentos chegaram a R$10.000 por mês para que eu pudesse chegar no nível que eu estou. Quando esse abuso aconteceu, muita coisa regrediu. Parei de falar, parei de comer, não conseguia me expressar e comecei a ficar agressiva novamente.
“O recrutador disse que havia gostado muito de mim. Mas na fase presencial, com menos de 1 minutos de conversa, me informaram que a vaga tinha sido preenchida. Notei que, na verdade, eu só estava sendo vítima de preconceito mais uma vez.”
— Gabrielle Ramos, sobre uma de suas experiências com processos seletivos.
Em paralelo a minha entrada na faculdade, tentei ingressar no mercado de trabalho. Antes de conseguir o emprego em que estou, passei por vários processos, mandei muitos currículos e participei apenas de 3 entrevistas. A primeira entrevista, durou menos de 1 minuto e 30 segundos de conversa porque o recrutador disse que eu tinha uma deficiência muito visível e isso me impediria de seguir no processo seletivo. Pensei comigo “Ok, foi só a primeira quem sabe na próxima.” No segundo processo que participei, o recrutador me elogiou muito por e-mail, disse que havia gostado bastante do meu desempenho. Por telefone, 1 hora antes da entrevista, ele afirmou que eu era única pessoa no processo seletivo e que a vaga era minha. Mas na fase presencial, com menos de um minuto de conversa, me informaram que a vaga tinha sido preenchida. Acho que ele não percebeu que notei que, na verdade, eu só estava sendo vítima de preconceito mais uma vez.
Isso aconteceu pois na época eu tinha um pouco de dificuldade na fala e além disso não conseguia sentar e ficar parada. Ficava me balançando, mexendo muito as mãos. Após esse episódio, me veio o pensamento de que talvez realmente não houvesse possibilidades e espaço para mim. Pensei ainda, que havia chegado a hora de me aposentar mesmo. Foi quando apareceu a vaga da empresa na qual estou. O processo seletivo foi todo adaptado, com muito carinho. Fui contratada mesmo sem ter experiência profissional prévia. Brinco que meu currículo não tinha nada além de nome e endereço. Me contrataram mesmo assim e foram me preparando ao longo do tempo. Claro que não foi um processo simples e fácil de inclusão. Foi muito difícil e acontece até hoje, de forma contínua. Mas posso dizer que estou muito feliz.
O que os termos “diversidade e inclusão” significam para você e qual a importância que eles têm no mercado de trabalho atualmente?
“Tem dois anos que trabalho na mesma empresa e até hoje o processo de inclusão acontece. É um processo contínuo. ”
— Gabrielle Ramos
Falar sobre diversidade e inclusão para empresas é uma coisa complicada, porque vejo muitas tentando pregar a ideia de que apoiam essa pauta apenas para fazer bonito nas redes sociais. Até que chega alguém que foge do que é dito como normal e padronizado, e as empresas não querem contratar. Talvez por medo da dificuldade que possam enfrentar.
Quando dou consultoria e palestra, sempre brinco que as empresas pensam que irá chegar uma PCD para trabalhar, o processo de inclusão durará uma semana e pronto, a pessoa está inserida no ambiente. Bom, não é assim. Tem dois anos que trabalho na mesma empresa e até hoje o processo de inclusão acontece. É um processo contínuo. Trata-se do que a empresa faz para que eu e outras pessoas consigam trabalhar, se sentindo bem e confortáveis. Isso é importante. Mas muitas empresas chegam na etapa do desafio e simplesmente desistem.
Já para mim, diversidade é simplesmente ser humano. Ninguém é igual a ninguém, mas as pessoas que fogem do padrão social tido como “normal”, sofrem com isso. Autistas, pessoas com deficiência auditiva e na fala, pessoas negras, indígenas... A diversidade existe entre todos, mas alguns grupos são tratados com importância minoritária. É aí que surge a necessidade do processo de inclusão.
Sobre autismo: quais são os mitos mais frequentes que você escuta?
Sempre falo que se você quer saber teorias sobre o autismo, você lê livros e procura profissionais. Se você quiser aprender a lidar com autismo, você tem que conversar com pessoas autistas. Têm muitos mitos que rondam pela nossa sociedade e que já escutei muitas vezes, como mães falando que não irão vacinar o filho pois a vacina causa autismo. Já vi falarem para o meu pai que eu era autista porque ele tinha me deixado assistir muita televisão. Já teve quem me dissesse que não posso ser autista porque eu falo ou porque trabalho e estudo. Então a imagem da pessoa autista, que carrega um estereótipo horrível, é o principal mito. Aquela que faz referência a uma pessoa sempre agressiva e na maioria das vezes um menino, que não fala, não entende as coisas, não aprende e não pode trabalhar.
Por isso mesmo nossa luta é para poder quebrar essa imagem que a sociedade criou. Eu sou autista e trabalho sim, estudo, posso me formar na faculdade e ter uma família se eu quiser, no meu futuro. É muito importante espalhar informações vindas de autistas porque temos nossa própria voz. Claro, têm autistas que não se comunicam de forma verbal, mas nós, autistas que falamos, estamos aqui para ser a voz dos que não falam.
Inclusão autista nas empresas: como as organizações podem melhorar para receber mais pessoas com desenvolvimento atípico em suas equipes de trabalho?
As pessoas precisam entender que ser autista não faz de alguém menos capaz. Muito mais do que um laudo, sou um ser humano como qualquer outro. E todo ser humano tem necessidades. A diferença é que eu tenho algumas que são um pouco mais pontuais. Deixo como por exemplo a minha entrada na empresa: no começo, as pessoas não sabiam bem o que era autismo, foi muito difícil. Até que, com um mês de empresa, escrevi uma carta explicando sobre o TEA (Transtorno do Espectro Autista) e sobre minhas características e necessidades. Só então o tema começou a ser tratado abertamente dentro da equipe e a inclusão passou a ocorrer na prática. Essa carta até hoje faz parte do onboarding da empresa. Antes, não existia a necessidade das pessoas da minha área em se atentar a quantidade barulho que faziam. Acontece que tenho sensibilidade a barulho então precisa existir um cuidado neste ambiente.
“As empresas precisam se sensibilizar (...), fazer perguntas mesmo, para entender como aquele profissional pode se sentir mais confortável e incluído. Comunicação é a base de qualquer inclusão.”
— Gabrielle Ramos, sobre os primeiros passos para ações inclusivas.
Às vezes, as adaptações podem ser pontuais. No meu caso, precisei de várias, até mesmo em relação ao meu lugar. Ao lado da minha mesa tem uma parede que não passa som, porque eu me distraia e ficava incomodada com barulho. Aos poucos, as pessoas aprenderam a falar baixo. Além disso, aprenderam a conversar sem usar tantas metáforas porque eu não as entendia com facilidade.
As empresas precisam se sensibilizar e ter a preocupação de entender como a pessoa se sente melhor. Eu me sinto melhor trabalhando na empresa, tem autista que se sente melhor trabalhando em casa. O contato e a comunicação direta são muito importantes. Falo sobre fazer perguntas mesmo, para entender como aquele profissional pode se sentir mais confortável e incluído no ambiente, para performar bem como todos. Comunicação é a base de qualquer inclusão.
Gabrielle, algo que aconteceu com você no trabalho, que a fez se sentir verdadeiramente incluída e segura?
Sim! Vou contar sobre minhas férias: entrei de férias chorando, porque não queria parar de trabalhar. Mas o pessoal do RH falava “Gabrielle, você precisa. Dois anos de empresa já, tem que tirar férias.” Até que me convenceram e eu fui. Claro que, dia sim e dia não, eu tinha que ir até a empresa dar oi para todo mundo. Quando eu estava para voltar das férias, a Fernanda, do nosso RH, mandou mensagem no Whatsapp e falou: “Olha, algumas coisas mudaram. Temos um novo colaborador que é o Everton”. E aí ela foi até o lugar do Everton, já de noite, tirou uma foto do lugar e o desenhou de boneco palito, explicando “esse é o Everton, ele é o novo back-end”. Isso foi o máximo para mim. Para muitas pessoas poderia não fazer diferença, mas para mim fazia muita. Porque eu sabia que quando chegasse lá, iria encontrar naquele lugar o tal do Everton. A Fernanda podia simplesmente ter falado que havia entrado uma pessoa nova. Ou sequer nem falar nada, me deixar voltar ao trabalho e encontrar as coisas mudadas. Mas a atitude não foi essa. Foi de cuidado em ir até lá, fotografar o local e desenhar o Everton. Esse é um tipo de ação que faz com que eu me sinta segura e acolhida.
Vivenciei outra situação que vale a pena contar. Quando fico incomodada com barulho, pode desencadear em mim uma crise, que me leva a tapar os ouvidos e me mexer para frente para trás. Já aconteceu inclusive de eu bater a cabeça e me cortar. Certo dia, na empresa, entrei em crise por excesso de barulhos. Era um dia em que a chuva estava forte, batendo na janela. Tinha muita gente falando, aspirador ligado, uma barulheira. Quando comecei a ficar muito agitada, me sentei no chão. Estava tendo reunião numa sala perto, com o dono da empresa que, ao me ver, parou a reunião, sentou ao meu lado no chão e ficou respirando comigo até que eu ficasse completamente calma. Pediu que desligassem todos os barulhos e fechassem a janela. Quando me tranquilizei, ele pediu para alguém me levar até minha sala. São situações que fazem toda a diferença.
Você tem alguma indicação para fazer às pessoas, para que conheçam mais sobre o universo autista?
A primeira indicação sempre vai ser para o meu instagram, né? @de.tudo.autista. Lá divulgo materiais e falo sobre o TEA e minhas experiências.
Preciso dizer que existem muitos filmes e novelas que falam sobre autismo, mas de um jeito super estereotipado, como aquela série “The Good Doctor”. Muita gente adora, mas ela fortalece estereótipos, então temos que saber analisar o material que vai fortalecer o estereótipo e o que vai ser realmente edificante.
Um livro que gosto muito e vou indicar chama-se “O que me faz pular”. É um livro escrito por um autista não verbal, ou seja, ele não fala, mas se comunica escrevendo. É um livro tão leve. São perguntas e respostas sobre como o autor vê o mundo. Por exemplo: "Por que eu bato palmas? Por que eu tampo os ouvidos? Por que eu me distraio quando você fala comigo”. O livro inteiro é assim, é pequenininho e super acessível.
E tem uma série que eu já assisti, sem exagero, 34 vezes, é Atypical, da Netflix. Acho incrível e sou apaixonada porque eles abordam a própria diversidade dentro do autismo. É sobre como pessoas autistas podem nem sempre se entenderem entre si ou ainda ter os mesmos gostos.