Uma história de superação diante da transfobia com Noah Scheffel

Noah Scheffel superação diante da transfobia

Este artigo pode conter possíveis gatilhos psicológicos*


Noah Scheffel superação diante da transfobia

Noah é um homem de fala controlada e calma, que escolhe com carinho cada palavra que usa para contar sua história. Dois pontos marcantes em sua personalidade que ficaram evidentes durante o bate-papo foram: sua notória dedicação profissional e ativista, e o amor que nutre por suas duas filhas, Anita e Helena.

A história de Noah é uma daquelas que jamais deveriam ter sua profundidade e importância resumidas em apenas um artigo. Talvez um livro fosse o mais adequado. Mas como atualmente não se pode perder a oportunidade de ampliar uma voz coerente, trouxemos as principais passagens da entrevista neste texto. Nossa indicação para embarcar no universo de Noah é: se prepare para bastante emoção e muita reflexão.

Qual é a história de Noah Scheffel

O Noah existe há 2 anos. Antes disso eu ainda não me identificava enquanto pessoa trans para a sociedade. Tenho um irmão gêmeo, e desde criança não me encaixava naquilo que seria o padrão esperado do sexo que me foi atribuído no nascimento. Quando eu era mais novo, não tinha conhecimento do que poderia estar acontecendo comigo. A situação era ainda mais complexa dado que minha mãe é 42 anos mais velha do que eu. (Bom, na verdade ela não é minha mãe biológica.)

Naquela época, não existiam muitas informações a respeito de identidade de gênero e orientação afetivo-sexual. Eu me entendia como uma pessoa não heterossexual, e minhas relações se baseavam assim. Aos poucos fui entendendo que, na verdade, era algo além disso, era uma questão de gênero. Eu não me identificava enquanto mulher. Essa sensação veio com muita força ao fim da minha adolescência, mas por pressão social preferi fugir e não lidar, já que o preconceito na sociedade era grande.

Segui minha vida “como mulher cis”. Comecei a trabalhar na área de tecnologia aos 18 anos, em 2007, e segui carreira na área até o ano retrasado (2019). Nesse meio tempo tive uma filha biológica da qual sou mãe, apesar de eu ser homem. 

Noah e sua mãe biológica

Com o passar da maternidade, quando minha filha tinha por volta de três anos, passei a refletir sobre como contar para ela a respeito de minha verdadeira identidade. Neste ponto minha relação de disforia já estava ficando insustentável. Para que eu pudesse fazer isso da melhor forma, comecei a buscar mais informações e processos. Essa busca passou pelo ponto de entender todas as amarras que eu tinha e o próprio entendimento em relação a minha mãe biológica, porque eu nada sabia dela, apenas entendia que ela tinha me abandonado. 

Aos 30 e poucos anos, ainda como uma mulher cis, a procurei. Ela foi muito receptiva, estava esperando o meu contato fazia 30 anos. Após meu nascimento, ela se mudou para a Europa. Veio ao Brasil 10 dias depois do meu contato. Foi aí que conheci o outro lado da história. Ela viveu em extrema situação de vulnerabilidade, morava na rua, sem estrutura familiar, mãe solo com duas crianças pequenas já nascidas, gestante. Por este motivo, minha tia, irmã do meu pai biológico, nos assumiu e educou da melhor forma que pode. Consegui ser compreensivo, afinal em meu próprio papel como mãe precisei aprender que nem sempre damos conta de tudo, e que às vezes alguém pode dar uma situação melhor de vida para seu filho ou filha. Esse contato foi fundamental para que eu entendesse a construção e a desconstrução de papéis que precisei fazer em relação à maternidade e à paternidade. 

Maternidade e paternidade

Eu estava em um relacionamento durante o momento da minha transição com minha companheira, Vivian. Ela também era mãe solo e para mim não havia outra possibilidade a não ser registrar a Helena, filha dela que já era minha filha de coração, e assumir o papel de paternidade que era uma lacuna que existia em sua vida. 

Ser mãe e pai de duas crianças, nessa ordem, foi um processo difícil que influenciou na minha transição. Cada vez era um novo pensamento sobre como seria difícil para minhas filhas explicar na escola a construção de família que tinham, e então pensava “é agora que vou perder a guarda da minha filha”. Foi um dos principais motivos para eu ter demorado tanto tempo.

noah scheffel maternidade

Um dos momentos mais marcantes da minha vida 

Foi quando eu decidi conversar com a Anita, minha filha biológica, sobre mim.

Fomos comprar areia e ração para o gato, após de tê-la buscado na escolinha, quando me decidi. Parei no estacionamento e perguntei à ela, morrendo de medo: "Anita, a mãe se parece mais com um menino ou uma menina?”. Anita, como uma criança de 5 anos de idade realmente empática, deu sua resposta mais sincera "Mãe, não quero que você fique chateada mas parece mais menino”. E respondi para ela: “É porque a mãe é menino”. Nessa hora eu só conseguia pensar que o momento que eu mais temia havia chegado, eu havia desmoronado o mundo dela. E ela, na maior simplicidade, me disse: “Então, se tu é menino tem que ter um nome de menino, mãe”.

Nunca imaginei que a criança iria vir com essa!  Respondi: "Tá, é verdade, a mãe precisa de um nome de menino”. Ela me perguntou qual seria seu nome caso ela fosse menino (conforme o gênero atribuído no nascimento). Expliquei que ela se chamava Anita por conta do meu nome de registro e, caso fosse menino, também seria uma derivação, trocando um pouco o lugar das letras. Seria Noah. “Então seu nome pode ser Noah, mãe”, ela disse. E naquele estacionamento da Petz nasceu o Noah.

A aprovação da minha filha era a mais importante para mim dentre todas as aprovações que poderiam vir. Então, como ela me aprovou, o próximo passo seria comunicar para as demais pessoas que eu estava “saindo do armário”. E isso envolvia meu espaço de trabalho…

A transição no mercado de trabalho

Eu trabalhava na mesma empresa há quase 10 anos, no cargo de Coordenação de Tecnologia. Era uma empresa que se mostrava aberta para a inclusão, que tinha inclusive Consultoria em Diversidade. Ainda enquanto pessoas cis mas em um relacionamento lésbico, já sentia dificuldade e algumas pressões para me incluir. Ali eu ainda me sentia forte. 

Quando passei a me identificar como uma pessoa trans, olhar em volta e perceber que eu era a única, descobri coisas sobre a vivência trans que iam além das coisas que eu já tinha lido. Na organização não tinha banheiro que eu pudesse frequentar, então evitava beber água para não sentir vontade de fazer xixi. As pessoas não respeitavam minha nova escolha de nome e justificavam dizendo que já haviam me conhecido de outra forma ou que não tinha porque eu estar fazendo aquilo. Passaram a me evitar, evitar falar comigo, por receio de não saberem como me tratar. Mesmo pessoas que eram mais próximas. Isso impactava muito a minha função como Coordenador, que me exigia ter contato com diversos outros setores da empresa. Eu mal conseguia mais dar o suporte necessário para projetos que aconteciam porque a Gestão não conseguia falar comigo. Mas apesar disso eu continuava lá, porque tinha duas crianças pequenas para sustentar, precisava pagar aluguel e tinha medo de não conseguir outro emprego por agora ser uma pessoa trans.



Foram diversas situações de micro violências e micro agressões. Mas o mais drástico aconteceu a partir da Gerente responsável pela área de Pessoas e Cultura. Essa pessoa executava atos transfóbicos explícitos, como impedir a chegada até mim de benefícios exclusivos para pessoas trans, mesmo com aprovação de toda a Diretoria. Até que em um determinado momento, quando eu já me posicionava mais fortemente sobre as discriminações que aconteciam com pessoas trans lá dentro, ocorreu uma avaliação de desempenho e essa gestora disse que não confiava no meu trabalho, além de dizer que a minha equipe reclamava de tudo dentro da empresa. Claro, era a equipe mais diversa que tínhamos porque eu sempre trazia pessoas em recortes diferentes, o que obviamente aumentava os casos de racismo organizacional e LGBTfobia. Apesar de eu ter uma relação próxima com dois dos Diretores-sócios de lá, acabaram avaliando minha performance com base na palavra dela, mesmo com relatórios e feedbacks de clientes e equipe sempre positivos. Ali o copo passou a transbordar. Eu já estava apresentando alguns sintomas depressivos e me sentia cada vez mais sozinho e preso.



Depressão, fim à vida e um grande caso de abuso psiquiátrico

Naquela quarta-feira passei a pensar que talvez fosse melhor para empresa se eu não estivesse lá. Que seria melhor para minhas filhas se eu não estivesse por lá também, afinal eu seria um problema a longo prazo para elas. Na época, Vivian, que era minha esposa, precisou se entender num relacionamento que não era mais lésbico, tivemos que passar por diversos processos dentro da relação e isso pesou bastante. Eu já não via mais sentido na minha existência além de só passar por estresse, sofrimento e me sentir muito preso.

Decidi que não iria mais viver e assim solucionaria os problemas de todo mundo, inclusive os meus. Fui para uma ponte. Não pulei por causa da Evelyn, uma pessoa que também sofria transfobia no trabalho, assim como eu. Eu estava com celular e mandei mensagem para ela, que se colocou numa posição de risco ao querer vir me ajudar saindo à noite enquanto mulher trans. Voltei para casa sozinho para que ela não corresse o risco, porém continuei com ideações suicidas. E ali, ao me ver sozinho, busquei pela minha psicóloga que me sugeriu uma internação psiquiátrica. Foi o que fiz, e foi a pior coisa que eu fiz.

Já na clínica fiquei em uma ala destinada para mulheres, o que já é um tipo de violência. Ainda assim acabou sendo algo positivo pois poderia ter sido muito pior numa ala masculina. Na clínica, o tratamento que as outras pacientes tinham comigo era: bater minha cabeça na parede todas vez que eu passava no corredor, constantemente roubar minha comida, me colocar medo a ponto de eu não conseguir dormir a noite achando que iriam me matar.

Nós não podíamos ligar para ninguém e tínhamos direito a receber uma chamada telefónica por dia, mas sempre diziam que já tinham me ligado e eu tinha perdido a chamada. Também me davam medicamentos sem me dizer o que eram, e caso me negasse a tomar, ameaçavam me levar para a eletroconvulsoterapia. Cheguei a acreditar que eram apenas ameaças, eu nem sabia o que era essa tal de eletroconvulsoterapia, até o dia em que uma senhora escondeu um celular dentro da fralda e foi dedurada. Tanto a senhora quanto a menina que a entregou desapareceram, e depois só a menina voltou. Ela foi punida por ter contado o que a outra havia feito e levada para a eletroconvulsoterapia. Ao retornar, a vi ficar estática por 24 horas, sentada no mesmo lugar.

Aquela clínica não tinha nenhum preparo para lidar com pessoas doentes. Independente da enfermidade, todas ficavam em conjunto no mesmo espaço, estivesse ali por alcoolismo, transtorno mental, ideação suicida. Chegou a um ponto que decidi que, se não saísse dali, iria a um banheiro interditado que tinha um espelho, quebraria o espelho e me mataria. Mas cada dia que passava eles me sedavam mais, e nada de eu receber as ligações.

Quando entendi que faziam essas coisas para nos manter mais tempo lá dentro, me cansei. Puxei um banquinho e sentei ao lado do telefone para esperar o horário de ligação. Fiquei lá por horas e lembro muito vagamente de ter conseguido falar com minha companheira. “Vivian pegue o meu documento e vem me tirar daqui, por favor”. 

Noah Scheffel superação diante da transfobia

Surge o EducaTRANSforma

Prometi que, saindo dali, iria usar meu privilégio de ter um emprego como Coordenador de Tecnologia e 15 anos de experiência na área, de ter tido a oportunidade de me formar e fazer pós graduação, para potencializar a vida de outras pessoas trans. Sei que só consegui isso por ter feito a transição de forma tardia, pois pessoas que fazem a transição mais novas do que eu acabam morrendo antes de atingirem minha idade. Criei o Educa um mês depois pensando em empregabilidade como uma forma de fornecer os demais acessos que todo mundo deveria ter direito, só que para pessoas trans. Foi pensando no viés que essas pessoas precisam estar empregadas para ter renda, e que as empresas precisavam aprender a receber essas pessoas.

Acionei as redes de contatos que eu tinha, literalmente batendo de porta em porta. Como o Educa foi criado um pouco antes da pandemia, consegui a renda necessária para capacitar oito pessoas, em aulas para Desenvolvimento de Software que duravam 12 meses, 3 vezes por semana, presencialmente em Porto Alegre. Conseguimos pessoas voluntárias para dar aulas.

As coisas estavam indo muito bem até que veio a pandemia, né. Mas eu sabia que mesmo assim não poderia tirar aquilo das pessoas porque seria talvez a única chance que viriam a ter na vida. Algumas nunca tinham trabalhado, nunca tiveram nenhuma oportunidade. Nós não fazíamos apenas a capacitação técnica, dávamos  todo o apoio desde tratamento hormonal, cesta básica, grupos de apoio psicológico e psicoterapia, até outros benefícios para que pudessem aprender, como vale transporte. Tirava do meu bolso para que isso tudo pudesse acontecer.

Um mês antes, participei de um edital do Itaú e recebi um prêmio em dinheiro que o funcionamento do por mais seis meses. Já estávamos ganhando nome e em pouco tempo apareciam pessoas questionando: “quando o Educa vai vir para São Paulo,  quando é que vem para Belo Horizonte?” Às vezes eu queria contar para as pessoas que nem fogão eu tinha com duas crianças em casa. Eu com certeza não estava nadando em dinheiro. 

Organizamos a questão orçamentária em busca de outras empresas e conseguimos lançar o Educa nacionalmente. Abrimos uma turma que poderia atender a 40 pessoas, mas recebemos 2500 inscrições em dois dias. Nacionalmente começamos em Agosto de 2020, e crescemos em números de parceria. Passei a prestar workshop e consultorias para retroalimentar financeiramente o projeto e conseguir incluir mais pessoas. Conforme as aulas passaram a ser online, pudemos flexibilizar os horários, diminuir o tempo de formação de 12 para 6 meses e criar outras trilhas de ensino na área de tecnologia, além da área de Desenvolvimento. Então também capacitamos pessoas para Mídias Sociais, UX Design, Suporte para computador, DevOps, entre outros. 

O nosso grande objetivo é mudar o mercado a ponto de que seja representativo para nós. Hoje existem produtos que são ótimos mas não são representativos, não foram feitos para nós. Por exemplo? Tento fazer uma conta bancária digital que está na moda e não consigo porque abro o aplicativo, tiro uma foto da minha identidade para criar a conta mas não consigo logar com a minha selfie, porque não bate com a foto do documento, ainda não retificado. Se tivesse uma pessoa trans por trás daquele projeto, ela teria pensado nisso. 

Em Janeiro abrimos inscrições para novas pessoas alunas e em Março também, totalizando 160 pessoas alunas no Educa TRANSforma. Em agosto teremos mais 60 vagas. E minha meta pessoal é capacitar mais pessoas trans no ano do que o número de assassinatos que é reportado.

“Se é pra atender a sociedade toda, eu também quero ser atendido. Quero logar no banco sem ter que abrir um chamado toda vez que eu fizer isso. ”

Diversidade e inclusão para Noah e a importância desses termos no mercado de trabalho

Diversidade é o que existe em qualquer grupo de pessoas, todas são diversas e diferentes. Já inclusão é o que não acontece para com todas as pessoas.

diversidade e inclusão no mercado de trabalho noah scheffel

Nesse sentido, vejo empresas trabalhando errado e fazendo a lógica inversa. Pensam em trazer diversidade só de forma quantitativa e isso é muito raso porque não existe a tentativa de entender de fato a nossa sociedade, entender demarcadores sociais, recortes, interseccionalidades e, a partir disso, ter como resultado a diversidade.

A diversidade já existe, está aí ocupando todos os espaço. Isso é um direito de todas as pessoas. Se uma marca não produz para todas as pessoas, não são todas as pessoas que irão consumir. Os temas ESG estão sendo muito falados hoje e, cada vez mais, quem consome tem buscado marcas que sejam representativas. 

Se é pra atender a sociedade toda eu também quero ser atendido. Quero logar no banco sem ter que abrir um chamado toda vez que eu fizer isso. Todos os perfis de pessoas tem que estar presente para desenhar produtos representativos, e não só em formato de representação. Ter UMA pessoa negra ou UMA pessoa trans é amostragem. Diversidade por amostragem não serve porque não vai trazer um ambiente colaborativo em termos de criatividade através de óticas diferentes. A inovação só vem através dessas diferentes vivências e óticas. 

Diversidade para as organizações não é gasto, é investimento. Não é favor, é valor. E acho que entenderam isso, só falta entenderem que não dá pra ficar no raso de pautar diversidade sem pautar inclusão e pautar inclusão sem pautar as diferentes interseccionalidades.


 
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