Perguntas, respostas e provocações sobre LGBTQIA+fobia com Hóttmar Loch
Nesta edição do SafeSpace Guest, você conhecerá Hóttmar Loch, CEO da Nohs Somos e especialista em Diversidade e Inclusão.
Prepare-se para conhecer a importante perspectiva de um empreendedor social sobre como a tecnologia e o mercado de trabalho podem se unir para mitigar a discriminação que acomete pessoas LGBTQIA+. Vamos lá?
Hóttmar, você pode nos contar um pouco da sua trajetória profissional e da criação da Nohs Somos?
Eu sou arquiteto, homem, cis, gay, branco, de classe média baixa “from roça”. Vim do interior, filho de pais separados, estudante de escola pública no ensino fundamental e instituto federal durante o ensino médio. Pelo PROUNI fui aluno de Arquitetura e Urbanismo, o que me trouxe a oportunidade de participar do Ciências Sem Fronteiras. Por meio do programa, fui para a Irlanda onde participei de um FAB LAB, que é um laboratório de fabricação digital para garantir autonomia para as pessoas. Foi ali que entendi o que de fato o que é a tecnologia e, mais especificamente, a tecnologia social. Com a Arquitetura e Urbanismo, aprendi fenomenologia, seus 3 pilares (matéria física, ações da natureza e pessoas) e o processo que existe na troca entre alguém e algo, inclusive no meio urbano. A cidade está para as pessoas assim como as pessoas estão pra cidade e isso é a consciência coletiva. Entender que uma cidade tem privilégios e entender as pessoas que estão nesses lugares é a minha trajetória como profissional de Arquitetura e Urbanismo especialista em tecnologia social
COMO NASCE A NOHS SOMOS
A Nohs Somos nasce de um grupo de amigos, a partir da vontade de usar a tecnologia como diretriz no combate a LGBTIfobia. O ano era 2018, época de processo eleitoral que teve como resultado uma onda de violência contra a comunidade LGBTI. E foi justo essa onda de violência que nos fez pensar “estamos aqui em Floripa, um dos polos da tecnologia do Brasil. Vamos juntar a galera e vamos ver o que a gente consegue criar.” Não tínhamos a pretensão de ser uma startup, só queríamos entender o que era possível usando design thinking como abordagem para entender dados de diferentes pessoas da comunidade LGBTI.
Aos poucos, entendemos que os marcadores sociais iriram trazer uma relevância muito distinta em relação a fobia com a comunidade LGBTI porque a percepção vai ser de um jeito se você é uma pessoa LGBTI preta, se é cis, trans ou uma pessoa LGBTI com deficiência. Ou seja, a interseccionalidade transparece uma dor real. Vimos a tecnologia como saída porque ela é neutra até que alguém diga algo e a partir disso a gente poderíamos construir por meio dessa propriedade intelectual. Começamos a desenvolver o projeto e a partir do entendimento das problemáticas, começamos a construir o como. Começamos no ‘porquê’ e depois fomos para ‘o quê’. Lançamos uma vaquinha de financiamento coletivo e entendemos o mercado como aliado. O mercado LGBTI sofre tanto preconceito que o dinheiro que roda dentro dele não vale como o restante, afinal as soluções são muito poucas. Hoje, estamos onde os EUA estava há dez anos atrás. O potencial é gigante, são 30 milhões de pessoas LGBTI+. Focamos portanto em uma das principais problemáticas é o atendimento e serviço e a partir disso usamos a tecnologia, de maneira não extrativista. Portanto, somos uma startup de impacto social porque usamos a tecnologia porém para garantir algum tipo de mudança coletiva, mapeando lugares amigáveis para a comunidade LGBTI.
Hot, você se intitula como empreendedor social em seus perfis online. Nos conta um pouco das responsabilidades e desafios de empreender visando a melhoria social nos dias atuais.
A realidade do empreendedorismo social, pra mim, vai no sentido oposto do empreendedorismo tradicional. No tradicional você sabe o que quer e está buscando o porquê daquilo, está vendendo algo e tem como objetivo, gerar a receita. Já o empreendedorismo social, parte de uma problemática de sociedade que se quer resolver.
E o grande ponto por trás disso é: enquanto o dinheiro de muitos permanecer nas mãos de poucos, continuaremos tendo uma sociedade em que o coletivo não é visto. Dentro dessa perspectiva capitalista, é necessário pensar “o que eu posso fazer para que o impacto social seja promovido?”. A partir do ‘boom’ de startups nos anos 2000, a percepção de quais são os problemas reais da sociedade passa a ficar mais explícita. Por exemplo, primeiro ouvíamos a música num vinil, depois numa fita, em seguida num disk man, então MP4, iPod, celular e finalmente o Spotify e nessa perspectiva percebemos que o ‘job to be done’ foi feito, ficou muito mais fácil para se ouvir a música.
Quando falamos em empreendedorismo de impacto social, voltamos o olhar para o encontro de uma solução que vise resolver uma problemática. O propósito do projeto é fazer algo em prol do coletivo. Dentro dessa realidade, estou direcionando esforços para onde o coletivo funciona de maneira melhor, começando a pensar no "porque" ao invés do “como”. Quais são os problemas da sociedade hoje e de que forma conseguimos usar as ferramentas existentes no mercado para solucionar e, como consequência, geramos receita porque é algo que para em pé, se sustenta. O foco é solucionar um problema dentro da realidade do que a gente tem hoje, que é o status quo, e para desafiá-lo é necessário conhecê-lo.
Ser empreendedor de impacto social é poder ajudar o mundo como um todo a se desenvolver a partir do lugar de onde eu falo, usar minhas habilidades técnicas e comportamentais para impactar positivamente o todo e partir disso deixar o meu rastro no mundo.
Sobre LGBTIfobia: muitas pessoas se enxergam como não homofóbicas mas dizem não entender a necessidade de falar sobre orientação sexual e identidade de gênero de forma aberta. O que você diria para essas pessoas?
Para mim, como homem gay, tive dificuldade em entender que eu era machista. Não entendia como um homem gay cis poderia ser machista. Ao entender isso, tomei consciência de que existe uma construção por trás daquilo que penso, que sou e sobre meu lugar no mundo.
Enquanto um homem cis, ao nascer já existia uma história contada na barriga da minha mãe... Vai ser menino, vestir azul, um dia vai ser pai, num modelo familiar tradicional e por aí vai. Tem toda uma construção que me foi imposta. A partir do momento em que eu rompi com isso comecei a ter consciência dessa estrutura de sociedade. O que é visto como padrão da nossa sociedade foi construído sob a ótica heterossexual, cis, masculina, branca. Estamos falando de uma estrutura de poder e de como a sociedade funciona. A cor branca, por exemplo, não é nem tida como raça, é vista como uma neutralidade e o que é diferente disso está errado. Daqui para frente existem dois caminhos: aquele com pessoas que não conhecem e não tem consciência sobre essa estruturação e as pessoas que já tiveram.
Quem não tem consciência sobre essa estruturação não se sensibiliza em relação à temática e muitas vezes não entende que ela fala de um lugar mas que dentro da sociedade existem vários lugares diferentes. Talvez essa pessoa não precise falar sobre a LGBTfobia, talvez essa essa discussão presente nunca se fez necessário porque não impacta em nada a vida dela. Talvez essa pessoa até tenha alguns amigos que são parte da comunidade LGBTI mas são gays, brancos, de classe média alta que nunca passaram por uma situação de discriminação. E isso não é um julgamento, é o entendimento de que trata-se de uma construção, portanto precisamos trabalhar com a conscientização.
Se estou conversando com uma pessoa e identifico que ela está dentro dessa construção, o meu discurso será voltado para trazer essa consciência. Mas ninguém aqui precisa ter o objetivo de ser uma pessoa salvadora, isso cada um trata na terapia, né? A ideia é falar sobre a realidade por meio do diálogo quem não tem diálogo mas quem não trabalha dados e fatos tem a necessidade de usufruir do nosso tempo. Agora, em relação às pessoas que foram tocadas, conseguimos trazer essa consciência com mais facilidade e a ideia é sensibilizar. E tudo o que eu falo para as pessoas, é de acordo com a minha história, meu lugar de fala, por exemplo, enquanto homem gay o que mais precisei trabalhar a minha vida toda e ainda trabalho é em relação a nunca me sentir bom o suficiente.
Então conto a minha história e trago a minha perspectiva e isso pode ser um caminho para trazer consciência a quem ainda não teve. E da mesma maneira que o meu lugar de fala é importante, o lugar de fala de uma pessoa trans é importante, o de uma pessoa preta é importante, de uma mulher cis ou de um homem hetero, branco, cis também é importante porque constituem a construção da uma sociedade na qual estamos todos e todas inseridas. A partir daí é necessário trabalhar a consciência dos privilégios e se existe culpa diante desses privilégios, então falta a ação de agir com responsabilidade. E agir com responsabilidade não dói, trata-se de responder com as habilidades, responder com base naquilo que eu sei com meus 28 anos de idade. Então, o ciclo para conversar com qualquer pessoa sobre LGBTfobia ou outra pauta do universo da diversidade é: primeiro cria-se a consciência de outra realidade, depois sensibiliza-se, entende-se privilégios e aí parte-se para agir com responsabilidade.
Como as empresas podem sair do discurso de serem aliadas da comunidade LGBTQIA+ e partirem para práticas reais? Quais são as mudanças que precisam ser vistas?
Para falarmos de diversidade e inclusão no meio corporativo, precisamos voltar no passado, lá na 3º Revolução Industrial onde tudo começou para entender que as empresas começam a responder a sociedade, e a sociedade são pessoas. E o que é uma empresa? São pessoas. Antes de vestirmos a camisa de qualquer empresa, vestimos a nossa. Uma empresa é um conjunto de pessoas que fazem acontecer e as pessoas fazem de acordo com o que são. D&I é olhar pra quem somos. É o SER que começa como uma resposta da sociedade para dentro do meio corporativo. Aos poucos, surgem estudos que mostram que pessoas felizes trabalham melhor, pessoas que amam o que estão fazendo vão ter entregas melhores. Voltado para o pilar da economia, o entendimento de uma pessoa que está bem fará entregas melhores, é um caminho interessante que começa a desafiar o status quo. É algo baseado em dados para se ter entregar maiores, mas a consequência será coletiva.
Vindo pro mercado corporativo, as pessoas precisam estar de acordo e vestir a própria camisa, ser quem se é trazendo a realidade da diversidade como um todo. O primeiro passo para que isso seja possível, é as empresas serem intencionais e comprometidas em aceitar a verdade sobre quem cada um é. É a intencionalidade que caminha com o cenário de impacto social e dentro dessa realidade, a partir do momento que eu sou intencional enquanto empresa, para falar sobre D&I eu preciso conscientizar, sensibilizar. E a estratégia interna usada pela empresa faz parte da estrutura social no final das contas. Ao levar essa conscientização do coletivo para as pessoas dentro da empresa, conforme a organização se organiza, o impacta social acontece.
É preciso capacitar, sensibilizar e levar a informação para o time interno e a partir disso elaborar ações de educação corporativa e assim D&I torna-se um pilar da economia. Se as ações de diversidade acontecem de forma solta, passa a ser um modismo. Agora, se a empresa estuda D&I, entende que trata-se de um novo pilar da economia que traz benefícios diversos. Percebemos inclusive o movimento das bolsas de valores que estão passando a cobrar por mais diversidade no time de boards ou até incentivos de financiamentos que cobram menos juros quando a inclusão acontece.
O caminho é a transformação social. A empresa transforma sua realidade interna, colabora com a ampliação de um espaço para que as pessoas sejam mais felizes e satisfeitas sendo quem são, obtêm um retorno estratégico diante disso e causa um impacto social e econômico positivo.
Por fim, você gostaria de deixar indicações de materiais para as pessoas que precisam aprender mais sobre a importância da causa LGBTQIA+ em nossa sociedade?
Filme: A vida e a morte de Marsha P. Johnson – Netflix
Marsha P. Johnson foi um dos ícones do movimento gay nos anos 60 em Nova York, nos Estados Unidos. Drag queen, negra e ativista trans, ela chegou a ser considerada a Rosa Parks da comunidade LGBT. Marsha também teve um papel crucial durante a Revolução de Stonewall, ocorrida em 28 junho de 1969. Tempos depois, o evento que daria origem ao Dia do Orgulho LGBT.
Série: Pose – Netflix
Pose é uma série criada por Ryan Murphy, Brad Falchuk e Steven Canals, que se passa na NY dos anos 80 e 90 e acompanha a vida de um grupo de pessoas, dentre elas gays e trans que participam de competições conhecidas por bailes, uma maneira em que a comunidade LGBTQIA+ encontrou para viverem seus sonhos numa época marcada por lutas pela sobrevivência e contra a AIDS.
Documentário: Bixa Travesty
Em Bixa Travesty, o corpo político de Linn da Quebrada, cantora trans negra, é a força motriz que captura a sua esfera pública e privada, ambas marcadas não só por sua presença de palco inusitada, mas também por sua incessante luta pela desconstrução de estereótipos de gênero, classe e raça.
Livro: Devassos no paraíso, escrito por João Silvério Trevisan
O livro "Devassos no Paraíso" é construído como uma pesquisa científica sobre a comunidade LGBTQIA+. O autor, João Silvério Trevisan, aborda com suas habilidades jornalísticas a opressão e perseguição que pessoas da comunidade sofreram no contexto histórico brasileiro.