Dia nacional da consciência negra: como caminha a sua?
A celebração da consciência negra existe para aclamar e respeitar as origens africanas na formação do povo e da cultura brasileira, honrando a história de luta e resistência das pessoas negras. Por mais que estejamos em 2020, vivendo a tal era da informação, é uma tarefa fácil pensar em conhecidos que questionem a importância desse dia.
Apesar de pautas antirracistas terem ganhado recentemente um lugar expressivo em discussões na internet e entre o público em geral, ainda existem pessoas que não enxergam os motivos pelos quais ainda precisamos, não só no dia da consciência negra, mas em diversas outras situações também fazer menção exclusiva e ações afirmativas para pessoas negras.
“Ah, mas porque nós não celebramos o dia da consciência humana, afinal somos todos iguais, não é mesmo?”
Este é um argumento frequentemente usado por pessoas que questionam a relevância de ações afirmativas. Nesse post, vamos desconstruir essa ideia e mostrar que apesar de, sim sermos todos seres humanos pelo ponto de vista biológico, as pessoas negras estão em desvantagem social há anos e isso precisa ser lembrado. Para chegar lá, vamos refletir sobre a história dos povos africanos, a escravidão e a construção de estruturas sociais racistas.
O que significa consciência negra?
Pode parecer um questionamento muito simples. De acordo com a definição do dicionário o conceito significa “sentido ou percepção que o ser humano possui do que é moralmente certo ou errado em atos e motivos individuais”. Bom, agora vamos deixar um pouco mais complexo. Qual o significado da consciência negra? Para responder essa pergunta, vamos explorar a definição apresentada no dicionário dentro do nosso contexto histórico? Quando pensamos no nível de desigualdade racial que ainda temos hoje no Brasil, será que todas as pessoas têm essa percepção moral em relação à história da população negra?
O Brasil aboliu a escravidão em 1888. Existem relatos de que algumas fazendas de engenho funcionaram até 1920. Isso faz apenas 100 anos, é uma história muito recente. É importante entendermos e pensarmos ativamente sobre como as estruturas sociais e instituições políticas de hoje são um reflexo dessa história para que possamos, enquanto sociedade, reparar essa dívida. Então vamos por partes.
O racismo é um sistema político
O ato de escravizar seres humanos já existia desde a Grécia Antiga, vinculado a guerras e seguindo cadeias hierárquicas, mas nunca através de uma motivação racial. Foi a ganância europeia em dominar o mundo que iniciou a sentença a povos nativos de outros continentes, em especial a África. Para essa dominação ser aceita e perpetuada, um conjunto de crenças que deslegitimam esses povos precisou ser difundido, junto a diversas leis e regras. Ou seja, um sistema político começou a ser construído. Para que esse sistema se mantivesse em pé, seriam necessários três pilares: um institucional, um estrutural e um declarado. O racismo institucional é aquele que nega benefícios básicos, serviços essenciais e oportunidades. O racismo estrutural abrange práticas, hábitos, situações e falas que inferiorizam. E o declarado, como você já deve imaginar, é o que incita o ódio através de falas ou ações diretas.
Você já ouviu falar sobre “democracia racial”? Ou ainda sobre o “mito da democracia racial”?
Somos um país miscigenado, é uma afirmação incontestável. Diante de traços, cores e culturas tão diversas, é praticamente impossível definir o que seria o padrão racial brasileiro. Tal miscigenação é retratada como motivo de orgulho bradado em discursos em defesa a bandeira verde amarela, definindo o Brasil quase que como “o mais extraordinário dos lugares: uma democracia mestiça. “ Mas a construção dessa miscigenação tem um problema grande que nem sempre é evidenciado.
Entre o final do período colonial e o começo do século XXI, aconteceu um movimento de embranquecimento da população brasileira, chamado de eugenia racial. De forma bem resumida, eugenia racial é o conceito perverso de que pessoas de determinadas raças são biologicamente inferiores em relação a pessoas brancas.
Isso significa que por quase 100 anos, mesmo após a abolição a escravidão, tínhamos biólogos, médicos, filósofos, escritores e até políticos defensores da tese de que doenças infecciosas vinham de pessoas negras, e que essas, sendo descendentes diretas dos primatas, tinham um cérebro subdesenvolvido, fazendo com que se tornassem preguiçosos, sujos, irracionais, incapaz de viver da mesma forma que pessoas brancas. Portanto no paraíso da democracia racial, só comiam em restaurantes, hospedavam-se em hotéis, estampavam revistas, e compunham a classe intelectual as pessoas brancas; as negras podiam, se lhes fossem permitidos, servir com sua força de trabalho neste local.
A grande maioria das pessoas têm consciência da injustiça dessa parte da nossa história. Agora gostaria de propor uma reflexão um pouco mais profunda: você consegue pensar em quantos bairros onde a maior parte dos habitantes são pessoas brancas? Já foi em restaurantes em que as únicas pessoas negras eram garçons e garçonetes? Você sabia que Monteiro Lobato, além de escrever a história do sítio do Pica-pau Amarelo, considerado clássico que foi consumido por crianças durante décadas também escreveu um livro defendendo a ideia da eugenia racial?
Será que a sociedade brasileira como um todo tem mesmo consciência negra?
O conceito de herança familiar
Quantas pessoas você conhece que trazem heranças familiares intrínsecas? Famílias que seguem a mesma religião, comemoram datas, seguem a mesma carreira ou apoiam o mesmo partido político há gerações. Ou ainda como se diz na Psicologia, herança transgeracional, aquela que herdamos hábitos, gostos e medos.
Agora vamos pensar em uma família formada no berço da escravidão. As heranças familiares provavelmente são muito distintas das citadas acima. Estas pessoas que viviam sob um regime de escravidão não tinham a liberdade de criar uma cultura familiar, nem sequer pensar em cultivar uma família por amor, por séculos!
As pessoas que foram escravizadas e trazidas para cá, não tinham a opção de explorar o conceito “família” como algo saudável, e quando escolhiam por formar um lar, eram coagidos, desrespeitados ou chantageados. O nascimento de um filho marcava alegria, mas também desespero, pois aquela criança já tinha um futuro definido. Quantas vezes você já pensou sobre isso?
Mais uma vez, é importante refletir. Como você acha que foi a construção familiar de uma pessoa negra liberta? Quantas coisas você imagina que essa pessoa teve que ressignificar?
A importância do dia 20 de Novembro
Somos todos racistas em desconstrução, e é por isso que esta data é importante.
A data é um símbolo dessa dívida histórica. O mesmo sistema racista que permitiu o regime da escravidão, que condenou e matou Zumbi dos Palmares. E deu origem ao feriado, hoje é responsável por deixar milhares de mães negras desamparadas carregando a dor de nunca terem uma resposta do porquê seus filhos foram assassinados.
A história das pessoas que foram escravizadas é de luta e resistência ainda que tenham sido sequestradas de seus países, tendo seus corpos mutilados, sua liberdade encarcerada, sua história esquecida, sua cultura criminalizada, seus traços ridicularizados, sua ancestralidade ocultada mas que, mesmo assim, cerram punhos para o alto num movimento de orgulho a sua raça.
O racismo é uma estrutura socialmente difundida na nossa sociedade. E é por isso que precisamos questionar e refletir sobre equidade racial todos os dias, até que todas as pessoas possam viver com segurança suficiente para transitar entre espaços sem sentir que seus traços, particularidade diversa de todo ser humano, irão ditar o sucesso ou a insuficiência de seus planos e sonhos, sejam eles familiares, profissionais ou vocacionais.