Perguntas, respostas e provocações sobre carreira e empreendedorismo negro com Antônia Souza

Antonia Souza carreira empreendedorismo negro

Quando falamos sobre empreendedorismo no Brasil, precisamos entender e questionar o significado do termo dentro de diferentes contextos sociais. Faz parte desse processo buscar conhecer histórias de pessoas que partiram de pontos diferentes e com necessidades diferentes para construir o seu próprio negócio.


Com a proposta de abrir mais espaço para esse tipo de diálogo, convidamos para o nosso
SafeSpace Guest a Antônia que dividiu conosco um pouco da sua trajetória enquanto mulher, negra, empreendedora que transformou sua realidade através dos estudos e hoje ensina outras pessoas jovens a desenvolverem suas carreiras profissionais.

Antônia, você pode contar um pouco sobre sua trajetória e como começou sua jornada como empreendedora e mentora de carreiras?

Tem uma frase da Angela Davis que fala que quando uma mulher negra se movimenta, toda estrutura da sociedade se movimenta com ela… Vi isso acontecer de forma ativa em minha vida e para contar minha história, preciso contar a história da minha mãe que me apresentou o empreendedorismo. E quando falamos sobre empreendedorismo temos primeiro aquele que é chamado de empreendedorismo por necessidade, que é o mais informal, o que a mulher brasileira está mais acostumada e também como minha mãe começou. Ela fazia cabelo no fundo do quintal da casa dela, começou a conquistar pessoas que confiavam em seu trabalho até conseguir montar um grande salão, empregar e fornecer estudo para a família inteira. Então quando falo sobre minha trajetória, sempre preciso falar de onde eu vim, que é Caxias, Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, filha de mãe cabeleireira, de pai pedreiro e que viu na história da mãe, como empreendedora informal que movimentou a história de uma família inteira, uma inspiração.

 
Cadeira com balões Antonia Souza carreira empreendedorismo negro

“Minha mãe sempre soube que o que faz a diferença, e principalmente na vida da pessoa que é pobre, é a educação. Só a educação é capaz de mudar uma vida de verdade, fazer com que você saia da situação em que está e vá para um outro pilar, mude até mesmo de pensamento.”

Comecei a trabalhar cedo com 16 anos, tentei meu primeiro empreendimento nessa idade junto com uma amiga, uma marca de moda praia que não deu certo mas trouxe muitos aprendizados. E então foi na faculdade onde eu tive contato com o outro lado do empreendedorismo, chamado de empreendedorismo por oportunidade, o tal do “empreendedorismo real”, aquele que falam nos livros, das startups, e tão diferente do que eu conhecia, por necessidade.

Após a faculdade abri uma esmalteria no Rio de Janeiro aos 22 anos, quando tive minha primeira decepção. Depois de um ano, por conta da crise, mas também pela minha imaturidade e falta de estratégia, o negócio não deu certo. Como aprendizado foi ótimo ter esse primeiro contato do que era empreender, ter uma equipe, ser um pouco de tudo no começo e aprender sobre todo esse âmbito.

Passei pela L'oréal, Stone, Uber, e mais recentemente fui Head de Business Development na Truora. Ali eu já queria há um tempo fazer algo que tivesse a minha cara, e durante todo o meu processo pessoal em chegar até aqui tive muitas pessoas que me ajudaram, não no sentido de abrir portas, mas foram meus mentores, me aconselharam, o que me fazia pensar “cara, preciso trazer isso de volta para sociedade, não dá para ficar só consumindo sem devolver retorno. Mudaram a minha vida e eu mudo a de quem?” Mas será que alguém queria me ouvir e validar o que eu tinha para ensinar? E então, conversando com minha mãe ela falou: “ai minha filha, você ajuda tanto seus amigos que podem pagar. Tenho uma cliente que está precisando e nem pode pagar, ajuda ela.” Fiquei com isso na cabeça... “poxa eu posso ajudar quem não precisa, mas e quem precisa e não pode pagar?” 


Depois de muita pesquisa, coloquei a mão na massa e fiz acontecer, com 10 pessoas interessadas em me ouvir, aprender a ajustar Linkedin, currículo, falar sobre carreira, preparação para entrevista e assim foi. Minha primeira turma foi de graça. Abri uma segunda turma só que nesse meio tempo me planejei para começar a cobrar. Investi mais de 20 mil reais para me formar mentora, passei a criar conteúdo para Instagram e passei a ter muito retorno. Hoje tenho mais de 60 mentorados, não estou mais na Truora, estou na Amazon mas a mentoria continua porque é o que faz brilhar os olhos e me ajuda a devolver para o mundo um pouco do que recebo. Tenho desde gerente de grandes multinacionais que vêm fazer mentoria comigo a pessoas estagiárias. Mas também reservo uma parte das vagas para quem não pode pagarmas tem força de vontade pra crescer e não cobro nada.

 
Três cadeiras Antonia Souza carreira empreendedorismo negro
 

Quais você acredita que ainda são os maiores desafios que mulheres empreendedoras enfrentam?

O retrato da pessoa empreendedora no Brasil é o homem branco de classe média alta. Logo que entrei na Truora, éramos apenas duas pessoas então eu quem ia para alguns eventos representar a empresa e de início foi um baque. Eu já era Head, já tinha passado por grandes empresas, mas no primeiro evento que fui, calada entrei e calada saí. Era o lançamento de um livro do ex-presidente da Google China, na Editora Globo, o que significa que o ambiente seria excelente para fazer networking. Mas quando cheguei lá, eu era a única pessoa negra e tinham poucas mulheres. Era um ambiente embranquecido e machista. Fiquei bem mal, um pouco assustada até. O objetivo em ir para esse evento não foi cumprido e acabei por levar esse papo para falar com a minha psicóloga que me falou “olha Antônia, você vai viver esse mundo agora, então precisa se empoderar. Entender que você não está ali de favor, você fez por merecer para estar naquele ambiente.” O que ela disse foi incrível, só que me vem um questionamento... Eu tive ajuda da minha psicóloga para começar a entender e a enfrentar esses momentos, a maioria das mulheres não tem, ainda mais mulheres negras. O que fazer diante disso? Quando você vai ver quem faz pitch em evento de startup, são pessoas que falam não sei quantas línguas, já viajaram para vários lugares, que tem um conhecimento de mundo absurdo. 

Acontece que os números mostram o contrário. Empresas gerenciadas por mulheres têm maiores lucros, têm mais diversidade e inclusão e vários indicadores muito melhores. Magazine Luiza por exemplo não nos deixa mentir.

 

Sabemos que o mercado de trabalho brasileiro ainda tem um caminho longo para percorrer quando falamos sobre equidade racial e de gênero. Como você se preparou para enfrentar essas barreiras enquanto mulher negra?

Meu preparo foi minha base, e ao falar sobre é necessário falar em consciência racial, que também aprendi com minha mãe. É importante entender minha história, recordar sempre que eu tenho o direito de ir a qualquer lugar independente de onde eu vim.

“Existe o estereotipo de que a pessoa negra só sabe falar sobre futebol, dança ou samba. Lembro de muitas situações em que começava a falar sobre Economia, culturas de outros países e me questionavam se eu tinha realmente ido para esses lugares. É triste saber que eu falo de um lugar de exceção, essa realidade precisa mudar e estamos começando a trilhar esse caminho.”

Na escola, ouvia que não se devia ir para determinada faculdade porque não dava emprego e que as empresas não contratavam nem para estágio ou então que quem não falasse inglês nunca conseguiria um emprego bom. Ao entrar nas empresas também ouvia “só selecionamos as melhores faculdades”. Mas precisamos parar e pensar, quem está nas melhores faculdades? Na minha turma de 2013 - Administração na UFRJ - que é uma excelente faculdade pública, formaram-se 3 pessoas negras, eu incluída numa turma de 60 pessoas. A faculdade era integral, num dos bairros mais ricos do Rio de Janeiro e para almoçar, embora fosse pública não existia bandejão, tinha que almoçar no Pé Sujo da faculdade que a comida era 30 reais ou no shopping Rio-Sul que como o Barra Shopping é um dos mais caros do Rio. Como se sustenta a faculdade assim? Essas são algumas das barreiras que as mulheres periféricas, que em maioria são negras, enfrentam. Por sorte tive minha mãe que me ajudou durante o percurso, mas é uma realidade que muita gente não tem. 

Fala-se muito de cota mas não enxergam que a cota só te ajuda a entrar, não existe outra facilidade além dessa, porque o resto é difícil pra caramba. Conheço pessoas que começaram a faculdade na mesma época que eu e até hoje não se formaram, por falta de oportunidade, porque precisavam trabalhar e não dava para conciliar com estudo.

“Eu sou exceção e não quero mais ser. Quero que várias outras pessoas possam chegar até lá. Meu preparo veio da base, pautada em educação desde sempre, por conta disso consegui entrar em boas empresas, mas a dificuldade da maioria das pessoas está no início da estrutura”

 
Balança com livro e lâmpada Antonia Souza carreira empreendedorismo negro
 

Sobre seu programa de mentorias: quais as maiores dificuldades que os jovens têm em relação aos processos seletivos para vagas de trabalho e como você acredita que o RH das empresas pode auxiliar esses talentos quando migram para novos desafios?

É necessário dividir essa resposta em duas etapas. Ao meu ver, tudo começa nas vagas e nos processos. Muitas vezes passam a impressão de que foram feitos para quem tem mais acesso a boas oportunidades, entrarem. Então a primeira coisa que eu falo é para o RH: quando for construir uma vaga, a descrição dela precisa ser analisada. Entender se todas as pessoas têm realmente a mesma oportunidade de sentar ali, ou se é só a pessoa branca da faculdade particular cara ou da faculdade pública que conta com maioria branca. Ter consciência que se pede intercâmbio, inglês avançado, entre outras coisas, está eliminando candidatos pobres porém muitas vezes extremamente competentes.

Quando estava na Uber, fizeram um programa para aumentar a quantidade de mulheres nas empresas e até a descrição da vaga precisou mudar. Conforme o projeto se desenvolvia, o número de mulheres continuava pequeno. Perceberam que a descrição era muito agressiva e passava a impressão de que ali não seria um ambiente saudável para mulheres. Então a primeira etapa para auxiliar a entrada dos jovens periféricos é ajustar esses processos.

A segunda parte tem mais relação com as pessoas jovens. Sinto que elas têm muita dificuldade para entender o que realmente querem, em qual vaga eles se encaixam, se existe fit cultural com a empresa. Às vezes parece que eles estão à deriva, atiram para muitos lados sem escolher um alvo. E isso também precisa ser ajustado. Esses jovens precisam de ajuda para passar por essa fase inicial da carreira que é realmente muito difícil. Os programas de mentoria tem um grande papel nisso.

 
Livro Antigráfil Antonia Souza carreira empreendedorismo negro

Você pode indicar e comentar sobre um livro que não pode faltar na estante das mulheres empreendedoras?

Um livro que eu amo e que me ajudou muito como profissional e empreendedora é o “Antifrágil - Nassim Taleb”. Isso porque ser uma pessoa que empreende é passar por desafios diariamente. É sangue, suor e lágrimas todos os dias. E desenvolver essa característica que te faz sair melhor frente às adversidades é incrível e extremamente necessário para quem quer ter sucesso empreendendo.


 
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