Perguntas, respostas e provocações sobre recrutamento com Tiago Lemos, Gente e Gestão do Burger King Brasil
No SafeSpace Convida deste mês, o papo foi com Tiago Lemos, da área de Gente e Gestão do Burger King Brasil. O convidado é cego total desde os 17 anos e, ao longo de sua carreira, passou por diferentes áreas do mercado até trabalhar com Recursos Humanos.
Ao longo da conversa, Tiago traz a perspectiva de um profissional com deficiência visual a respeito de processos seletivos com ação afirmativa, práticas efetivas de inclusão nas empresas e os desafios impostos por vieses capacitistas. Boa leitura!
Tiago, conta para a gente sobre sua trajetória pessoal e o que te levou a trabalhar com Recursos Humanos?
Eu tenho 38 anos, sou pai do Gabriel e da Julia, e casado com a Daniela. Sou apaixonado por esportes radicais, e cego total desde os 17 anos, devido a um glaucoma. Um dia, acordei sem enxergar.
Sou formado em administração e pós-graduado em psicologia organizacional. Atuo na área de RH há 20 anos e costumo dizer que caí aqui de paraquedas, apesar de envolver temas pelos quais sempre me interessei: pessoas, desenvolvimento pessoal e profissional, Diversidade e Inclusão.
Eu entrei no mercado em 2004, por um programa de empregabilidade voltado para pessoas com deficiência. Nessa época, fui alocado na área de matemática financeira de uma empresa. Fiquei ali por 6 meses e, embora eu gostasse de lidar com números, a tecnologia na época não favorecia meu trabalho.
Em razão disso, pedi para ser transferido. Quando questionado sobre a área que eu desejava seguir, não soube responder. Eu vim de um contexto periférico, estava no meu primeiro emprego e ainda não tinha outras oportunidades de contato com o mercado de trabalho.
Fui para a área de Pagamentos e comecei a ter contato com pessoas. Ali, entendi que tinha me encontrado - aquilo fazia sentido para mim. Depois de um ano, finalmente fui para a área de Recrutamento e esse passo foi essencial para o meu desenvolvimento pessoal. Encarei muitos desafios: recrutei desde cargos de base até posições executivas.
Mais tarde, durante 9 anos, trabalhei na área de Diversidade & Inclusão de uma instituição financeira. De lá para cá, transito entre projetos de treinamento e educação corporativa, capacitação e desenvolvimento de lideranças, reestruturação de áreas de diversidade nas empresas.
Trazendo a perspectiva de uma pessoa com deficiência visual, quais dificuldades você encontrou no mercado de trabalho? Desde dificuldades estruturais até sociais, como discriminação, estigmas, etc.
A primeira dificuldade é uma barreira de conhecimento. Primeiramente, é preciso quebrar a ideia de que pessoas com deficiência não são profissionais competentes, com soft skills já desenvolvidas.
A deficiência é vista antes do profissional em si, na grande maioria das vezes. Em uma reunião, minha cegueira chega antes de mim.
Uma segunda barreira, também muito comum, é a tecnológica. Hoje, existem ferramentas para pessoas surdas, pessoas cegas, pessoas com limitações nos membros superiores… O ponto é: as empresas estão dispostas a investir em inclusão?
Essas práticas refletem a mentalidade das empresas em contratar pessoas de recortes sociais diversos pensando apenas nas cotas, em cumprir normas e leis. O que estas pessoas podem entregar como profissionais não entra na equação.
Quais aspectos você considera decisivos para entender se uma empresa está realmente comprometida com pautas inclusivas?
Eu entendo a “diversidade” como um termo muito amplo. O que eu tenho percebido bastante nas minhas interações com outras empresas e em benchmarks que eu faço, é que as pessoas limitam essa “busca por diversidade” à abertura de vagas afirmativas.
Contratar por contratar, só para preencher uma vaga afirmativa, não é inclusão. Muito menos equidade. É seguir a manada, e é um movimento pouco sustentável para qualquer organização.
Por exemplo, no caso de recrutamento, é muito comum que pessoas com deficiência sejam contratadas apenas para vagas de base, com funções operacionais. Deve existir um trabalho cultural de reconhecimento e desconstrução desses vieses inconscientes.
E essa desconstrução não pertence só ao RH. A área de finanças também precisa ser inclusiva. O jurídico e o comercial precisam ser inclusivos. A gestão e as lideranças da empresa precisam - e muito - ser inclusivas. Quando a área estratégica de Diversidade atua de forma escalável e entende a influência da liderança para ditar o tom em toda a empresa, constrói-se uma cultura inclusiva.
Estigmas e vieses inconscientes ainda aparecem como obstáculos para pessoas com deficiência na porta de entrada das empresas. Qual deve ser o foco/direcionamento para quem está começando a abrir processos seletivos com ações afirmativas para PCD?
A cultura corporativa ainda está muito mais pautada na questão legal, de cumprimento de metas legislativas, e menos em uma intenção efetiva de promover a equidade.
Quando eu abro uma vaga afirmativa, eu estou chamando as pessoas de grupos minorizados. Estou abrindo portas para pessoas que talvez não se candidatariam, se não houvesse exclusividade.
Mas os esforços devem ir além. Caso contrário, estamos alimentando uma estrutura na qual assentos estratégicos na organização não são preenchidos por pessoas com deficiência - só cargos de base.
Eu sempre fiz questão de me candidatar para vagas que não fossem afirmativas. Quando possível, também tentava contato direto com a pessoa recrutadora ou gestora responsável pela posição.
Não é o caso mais comum, reconheço que é um diferencial meu. Mas essa iniciativa fez com que minha deficiência deixasse de chegar antes de mim. A pessoa recrutadora passou a ver minhas competências e, possivelmente, criou expectativas em relação ao que eu posso entregar como profissional.
Equidade é chegar no ponto em que poderemos colocar pessoas com e sem deficiência em um mesmo processo seletivo, de forma que a decisão de contratação não esteja enviesada por estigmas, e sim baseada em competências.
Você tem indicações de conteúdos para pessoas que querem se aproximar ou se aprofundar sobre pautas sociais relacionadas a D&I? Pode ser um podcast, vídeo, texto…
Eu acabei de ler um livro que indico muito: “Diversidade e Inclusão e suas dimensões.”
Foi escrito por mais de 40 pessoas especialistas no tema, que trazem diferentes caminhos, opiniões e sugestões sobre culturas inclusivas. Tem muitas ações ao longo da leitura que podem ser colocadas em prática. Por isso, deixo a recomendação.