Diversidade, inclusão e racismo no mercado de trabalho com Juliana Kaiser
Juliana Kaiser acumula anos de experiência na luta para garantir mais diversidade e inclusão no mercado de trabalho brasileiro. Fundadora da Trilhas de Impacto, startup social que oferece mentoria para talentos negros, ela também é professora, palestrante e conselheira da Associação Brasileira de Recursos Humanos do Rio de Janeiro.
Além de desenvolver pesquisas acadêmicas sobre pobreza e diversidade racial, Juliana viajou o Brasil como consultora de diversas empresas. A experiência permitiu que ela enxergasse problemas e desafios que não se veem dos escritórios dos grandes centros econômicos do País.
Juliana conversou conosco e apresentou com clareza sua visão sobre o racismo no mercado de trabalho brasileiro e caminhos para enfrentá-lo. Segundo ela, ainda há muito que ser feito e a mudança parte de um compromisso entre as empresas e a sociedade.
Confira nosso papo:
Pode nos contar um pouco sobre você e como foi a sua trajetória até aqui?
Eu sou conselheira da Associação Brasileira de Recursos Humanos do Rio de Janeiro, a ABRH, da qual já fui diretora. Sou Conselheira 101 e também atendo algumas empresas como conselheira independente. Sou professora da UFRJ, no Instituto de Economia, onde trabalho com o tema da pobreza e da diversidade racial. Também leciono no curso de Diversidade da Escola de Negócios da PUC.
Iniciei um estudo sobre pobreza há mais de uma década. No Brasil, quando estudamos pobreza, a gente acaba esbarrando na questão étnico-racial. Originalmente, fazia mediação de conflito em território. Então, trabalhei para empresas de grande porte, de mineração, de geração de energia e de infraestrutura naquilo que eu chamo de “Brasil profundo”. Eu dava suporte para a construção dos relatórios de sustentabilidade, especialmente quando havia alguma discrepância nos dados.
Essa discrepância vinha da fala das pessoas, geralmente, negras, indígenas ou quilombolas não-negras que viviam nessas regiões e o que diziam não batia com o que estava sendo discutido nos escritórios de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Trabalhei muito tempo ajudando a promover essa costura. Eu ia até o território para ouvir as pessoas e verificar violações de direitos, que aconteciam em sua maioria com pessoas dentro desse recorte.
Conheci um Brasil que, quem está nos escritórios do Sudeste, não conhece. Foram muitos anos apoiando empresas em um trabalho de responsabilidade e confidencialidade. Vi coisas difíceis, dolorosas e complexas, que poderiam ser facilmente resolvidas se houvesse mais compromisso das organizações com a transparência e da capacidade de ir além dos relatórios.
Muitos problemas de violação de direitos humanos, de trabalho análogo à escravidão, entre outros, poderiam ser mitigados se as pessoas saíssem um pouquinho dos seus escritórios confortáveis e fossem conhecer o Brasil de verdade. É isso que eu venho fazendo nos últimos 18 anos.
Em meio às viagens pelo país, nasceu a Trilhas de Impacto. Como isso aconteceu?
A Trilhas de Impacto foi criada para levar para as empresas soluções dos problemas que eu já vinha enfrentando há anos. A gente se autodenomina como startup social. Trabalhamos com muita transparência em relação aos números e nosso foco é promover impacto positivo.
Oferecemos três soluções. O carro-chefe é nosso serviço escalável de mentoria para talentos negros. Não adianta só contratar pessoas negras para cargos estratégicos. É necessário treiná-las, dar mentoria e acompanhá-las para que elas não peçam demissão. É comum que elas peçam demissão por problemas como os que a SafeSpace combate: assédio, discriminação e racismo.
A mentoria apoia o desenvolvimento das pessoas colaboradoras, para garantir que fiquem nas empresas e entendam a linguagem corporativa. Ao mesmo tempo, nós oferecemos para as empresas um banco de currículos de talentos negros com as mais variadas áreas de formação. Dessa forma, também trabalhamos para diminuir o número de empresas brasileiras que nos procuram dizendo que tentaram contratar pessoas negras em volume e não encontraram profissionais qualificados.
Também fazemos hunting de talentos para cargos de média e alta liderança. Ao posicionar pessoas negras em posições de gerência e direção, a capacidade de mudança da cultura organizacional é muito maior. Ao ter um diretor ou uma diretora financeira negra na empresa, por exemplo, todo mundo vai ter que lidar com o fato de que os direcionamentos virão dessa pessoa, que é negra. No Brasil, essa é uma questão que ainda precisa ser trabalhada e tem alto grau de importância.
Finalmente, entendemos que é necessário que CEOs e as lideranças sejam promotores dessa jornada. Por isso, trabalhamos com treinamentos para esse público-alvo a fim de que sejam porta-vozes da diversidade racial nas empresas.
Em dois anos de Trilhas, impactamos mais de 13 mil pessoas. Atendemos cerca de 30 empresas de grande porte. Queremos chegar a 50 mil pessoas impactadas nos próximos dois anos e, para chegar até lá, fomos acelerados pelo BNDES e pela Artemis.
Um levantamento feito pelo site QueroBolsa mostra que o número de pessoas negras no ensino superior cresceu 400% entre 2010 e 2019. No entanto, o número de pessoas negras nas empresas não acompanhou essa mudança. Por quê?
Essa questão perpassa pelo desconhecimento e preconceito. Fui professora da UERJ, a primeira universidade brasileira a implementar a política de cotas raciais. Eu era a única professora negra na Faculdade de Educação da universidade. Um dia, estava dando aula, quando uma colega, Doutora em Educação, entrou na minha sala de aula e me interrompeu. Ela não me reconheceu como professora e disse o seguinte para os alunos: “vocês, cotistas, que não sabem português, vão ficar até mais tarde para o reforço.”
Naquele momento entendi que, independentemente de onde aquelas pessoas tivessem estudado ou do contexto delas, a cor da pele chegava primeiro. Eu tinha duas alunas que não só falavam muito bem português, como tinham sido jogadoras de basquete nos Estados Unidos e falavam um inglês sensacional.
“É isso mesmo? Ela está sendo racista assim?”, me perguntaram. Está. Naquele momento entendi que deveria fazer a diferença. Fiquei conhecida na universidade porque apoiei todos os alunos cotistas à época a conhecerem a estrutura que a universidade oferecia. Junto a outros professores antirracistas, ajudei os alunos a aplicarem para várias universidades mundo afora.
Quando uma empresa me busca pedindo um perfil específico, com inglês fluente e dizendo que não o acha, peço uma semana para reunir uma lista robusta. Elas me retornam chocadas. As empresas não encontram essas pessoas porque elas estão em áreas periféricas, o que não significa que não sejam pessoas letradas, com segundo ou terceiro idioma, que tenham feito universidade de ponta.
Em razão da política de cotas, as pessoas negras são maioria nas universidades federais do país. Se a questão era entrar na USP, na UFRJ, na Unifesp, por que esse número não se reflete nas empresas? Porque quem contrata são pessoas brancas. Não por acaso, sou conselheira da ABRH, a única conselheira negra de uma das regionais no Brasil inteiro. Isso quer dizer alguma coisa.
“Para cada 1 real ganho por um homem branco, uma mulher negra recebe 0,43 centavos no mesmo cargo.” Por que é tão difícil que as pessoas gestoras percebam essas incongruências e lidem com esses problemas?
Há algum tempo, eu dei uma entrevista para o jornal O Globo. O título do artigo foi“Por que a tia do café é sempre negra e o CEO nunca é?” Eu lembro que o jornalista, negro, que me entrevistou ficou incomodado quando eu falei “tia do café”.
“Por que você está despersonalizando uma mulher negra?”, ele me perguntou. Porque é assim que ela é vista no mercado de trabalho brasileiro. Ela é a tia do café, é a tia da limpeza. Ela é qualquer coisa, menos uma profissional qualificada, mesmo sendo uma profissional que trabalha como auxiliar de serviços gerais.
Existe uma dificuldade grande no mercado corporativo de mudança cultural em entender que pessoas negras têm muito a contribuir. Posso trazer uma perspectiva como mulher negra que sempre ocupou espaços diferentes. Fui estudar fora do Brasil pela primeira vez com 19 anos e, desde então, sempre viajei muito.
Aqui, sempre ouço: “Nossa, mas como você viaja, como você é articulada.” Já cheguei a ouvir coisas como “nem parece que você é negra”. Essa é a percepção que se tem e o que se espera é uma atitude de subserviência da mulher negra.
Por isso, é tão complexo alocar pessoas negras, especialmente mulheres, em cargos estratégicos em empresas que têm estruturas racistas. E essas estruturas são formadas por pessoas racistas.
Gosto de evitar eufemismo ao falar sobre racismo porque gera constrangimento e provoca mudança. Como é o caso de um CEO que me chama para almoçar e percebe que sou a única mulher negra sentada em uma mesa. As outras pessoas negras estão todas servindo.
“Você reparou, que coisa. Por que será? Será que as pessoas negras não se interessam em vir nesse restaurante ou existe algo que faz com que elas não estejam aqui?
Agora, a gente olha para esse restaurante e olha para a sua empresa.
Quando vou fazer uma reunião com você, porque novamente sou a única pessoa negra na mesa e as outras pessoas negras limpando o banheiro?”
É dessa forma que as coisas mudam, é esse choque que provoca a mudança. Às vezes, é preciso tensionar, deixar o outro constrangido, colocá-lo contra a parede. Não tem jeito.
O que precisa ser feito para melhorar o cenário de diversidade e representatividade nas empresas?
É preciso contratar pessoas negras para média e alta liderança. Vai abrir vaga para coordenação, para especialista? Contrate pessoas negras, contrate em volume. Esse é o ponto. Aumentar a contratação e exigir que no shortlist 50% sejam pessoas negras. Olhar para esse shortlist no momento do recrutamento de seleção com lupa, mas trazendo as questões de racismo estrutural.
Se todo o processo seletivo não é afirmativo, o dinheiro fala mais alto. Eu vou ter pessoas que fizeram intercâmbio na Austrália, universidade nos Estados Unidos, pós-graduação, escola de negócios, em universidades caríssimas competindo com um jovem negro da zona leste que, por nenhuma outra razão a ser pelo background financeiro, não teve as mesmas oportunidades.
Qualquer pessoa com R$ 300 mil faz um curso em Berkeley, Harvard ou Stanford. Para fazer o curso, ela também precisa ter um exame de proficiência alto, então não adianta estudar inglês por um ano. Ela teve que estudar numa escola bilíngue, teve que fazer intercâmbio com 15 ou 16 anos. Isso tem a ver com dinheiro, não com competência.
Se eu coloco essa pessoa para competir com alguém que precisa ajudar a mãe que é diarista, pega busão todo dia, teve acesso à USP ou a alguma universidade privada por política de cotas ou Prouni, sem colocar a lupa do racismo estrutural, o que acontece? A pessoa negra e periférica não vai ser admitida “por que ela não é tão boa assim.” Quanto custa um currículo? Essa é a pergunta que deve ser feita.
Quem está no RH, precisa ser sensibilizado. Tem que ter capacidade de olhar e fazer essas escolhas. Esse é um trabalho em conjunto, não existe mudança de forma isolada. A gente muda isso como sociedade e, para tanto, é preciso ter vontade das empresas. Agora, o que mudou é que empresa que não investe em diversidade, perde dinheiro. E tem que perder mesmo.
Empresa que não tem time diverso, não tem investidor. É daí que as empresas começam a se movimentar, ter processos seletivos que olham para a diversidade. Eu quero mais. Tem que perder investimento, ter resultado negativo na bolsa. A empresa está na B3, está na Dow Jones e não tem pessoa preta na equipe, vai perder dinheiro. É assim que muda rápido. A gente começa a falar mais a língua do business.